Moradia

MORADIA

Lugares são feitos de pessoas

Basta parar por 20 minutos em frente às grades de uma faculdade situada de frente para a Conde da Boa Vista, a artéria nervosa do bairro, para ver um desfile de pêras, uvas e maçãs se misturarem na salada mista de cores e sotaques que forma a sociedade recifense. Pessoas passam. Milhares, todos os dias.

O telefone celular parece um elo universal. Um. Dois. Dez transeuntes o carregam junto ao rosto. Através dele, mais pessoas se unem à roda viva do bairro, mesmo que virtualmente.

Mas não é o caso de falar em impessoalidade. Um grupo de amigos dá uma risada coletiva. A neta segreda uma confidência à avó. Um menino parece aborrecido com o passo apressado da mãe. Todos têm espaço.  A tatuada do cabelo rosa, o ambulante africano, o gay fashion, o casal de namorados. Tão singulares. E tão plurais.

“Moço, a C&A fica pra esse lado?”, pergunta a mulher do interior; sotaque arrastado. É ela que tira o observador de seu transe, lembrando que contato vai muito além de apontar uma direção. Lugares são feitos de pessoas; e é delas que vamos falar agora.

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Entre efêmeros e permanentes, três perfis da Boa Vista
Suzana Mateus

Pessoas passam. Depressa, com calma, falando ao celular, em silêncio. Cercada de amigos, com uma companhia, sozinhas. Felizes, tristes, preocupadas, agitadas. De hippie a executivo, lá a diversidade se encontra. Pessoas de todos os sexos, idades, tamanhos, tipos, estilos e aparências.

As cores de Almodóvar e Frida Kahlo se mesclam e se evidenciam. As diferenças se chocam. A desigualdade se mostra. As semelhanças também se destacam. Centenas de semblantes preenchem o espaço. A trilha sonora desse momento se deve ao assobio dos pneus dos veículos, ao anúncio do carro de som, ao cricri das conversas alheias e ainda aos gritos ensurdecedores dos ambulantes. É assim uma tarde na Conde da Boa Vista, principal avenida do Bairro que possui nome semelhante.

Entre a confusão de cheiros, sons, cores e gente, várias histórias se cruzam. Histórias diferentes ligadas por circunstâncias variadas que se relacionam com o mesmo espaço. São pessoas que moram ali, que construíram ao longo da vida laços profundos com aquele lugar e vivem sob a ditadura dos problemas típicos da área central de uma grande cidade.

São aquelas que encontram na Boa Vista uma chance de ganhar o sustento para sobreviver, que doam boa parte de seu tempo para estarem ali cotidianamente lutando para vencer mais um dia. E ainda outras que apenas passam. De ônibus, carro ou a pé, são os efêmeros do entorno. À procura do comércio ou porque aquele é o seu itinerário, elas seguem pela Boa Vista. E foram seguidas pelo nosso olhar...

Dona Luzinete: “A variedade me chama para cá”

No ambiente climatizado do Shopping Boa Vista, uma senhora de cabelos parcialmente brancos se encontra sentada em um banco, lendo tranquilamente o livro “Harpa Avivada e Corinhos”. Usa saia longa e camisa xadrez. Trata-se de D. Luzinete, 61 anos, residente no Bairro do Cordeiro desde que se entende por gente.



Dona Luzinete (Foto: Suzana Mateus)
 “Moro no Cordeiro desde sempre, conheço todas as gerações que passaram por lá depois do meu nascimento”, conta ela. “Venho para a Boa Vista fazer compras porque a variedade de produtos comercializados aqui me chama para cá. No Bairro onde moro não há tanta diversidade”, completa.

Evangélica há sete anos, viúva há 12, mãe, avó e bisavó, Luzinete gosta de frequentar especificamente o Shopping para passear, ir ao cinema e visitar a praça de alimentação, mas também porque prefere lugares mais tranquilos. Para ela, é bom sair um pouco de casa para descontrair e o centro é sempre um bom local para marcar com amigos e familiares pela praticidade que oferece.

 Ela até já pensou em morar na Boa Vista para não depender de coletivos “Mas essa parte é meio contraditória. Não queria morar num desses apartamentos. Queria morar numa casa, com mais espaço, quintal, árvores, frutas... Essas coisas que eu acho que não existem por aqui. É muito mais uma idealização minha”, diz ela com um sorriso estampado no rosto.

Com um perfil tipicamente efêmero em relação ao bairro, Luzinete reclama com veemência dos problemas de mobilidade encontrados durante o seu percurso e no próprio centro. O deslocamento de seu bairro para a Boa Vista é difícil principalmente por causa dos constantes engarrafamentos e das paradas que são muito estreitas, prejudicando a passagem das pessoas quando os ônibus param para elas subirem. “Acredito que seja exatamente pelas dificuldades de se chegar aqui que eu já pensei em morar nesse bairro”, explica.

Com uma voz bastante suave e uma imensa tranquilidade ao explicitar seus pensamentos, a dona de casa não perde a doçura nem mesmo quando fala de um infeliz episódio vivenciado no Bairro da Boa Vista. Há cerca de cinco anos, quando ela estava no ônibus indo para casa, três rapazes armados anunciaram um assalto. Os rapazes se dividiram: um ficou na frente com o motorista e os outros dois foram recolhendo os objetos das pessoas. “Eles levaram meu celular, mas, graças a Deus, não machucaram ninguém”, se recorda.

“Tempos depois, encontrei a cobradora do ônibus assaltado e ela me disse que o motorista sofreu um trauma tão sério que perdeu a memória. Fiquei comovida com a situação”, diz ela. “Então, sempre quando saio de casa, oro e peço que Deus me abençoe. A gente nunca sabe o que nos espera, né verdade?”.

Cícero: “Minha arte é o meu ofício”

Entre as várias pessoas que passam a toda hora, muitos olhares são fisgados a contemplar a beleza dos quadros:

- Olha, vó, ficou igualzinha a Ivete!
- Você está de parabéns por esse trabalho, rapaz! A Fátima Bernardes ficou até mais bonita ai do que é em carne osso (risos).  
- Caramba, Você é ótimo! Quanto custa esse aqui com uma foto minha com meu namorado? - R$ 180 é a resposta de Cícero - Tudo isso?! Esquece. Tá muito caro, não há condições. 

É assim que o retratista de personalidades como Elvis Presley e Ivete Sangalo leva mais uma tarde expondo seu trabalho na Conde da Boa Vista.

Cícero (Foto: Suzana Mateus)

Dom, talento e ego talvez sejam as palavras mais coerentes para se traduzir Cícero Pereira. Natural de Alagoas, o artista de voz amena e sotaque arrastado nasceu na cidade de Palmeira dos Índios, Agreste do estado, a cerca de 130 quilômetros da capital. “Saí de lá para divulgar minha arte. Fui então para Maceió, mas não gostei. Estava buscando novas experiências, então resolvi vir para cá.”

Há cerca de cinco anos comercializando seus quadros na Boa Vista, o artista de 23 não gosta muito de falar de seu passado. “Eu morava com pai, mãe e irmãos. Sinto falta deles, mas hoje quero ter a minha própria família”, destaca. “Vim para cá para que a minha arte tivesse mais visibilidade e, apesar de conseguir expor o meu trabalho de uma maneira bacana, enfrento algumas dificuldades. Quando chove, por exemplo, é impossível trabalhar”, complementa ele, que não dispõe de nenhuma cobertura para proteger os retratos.

E as dificuldades apontadas por Cícero não acabam por aí. O artista costuma se questionar com frequência se está no lugar certo. Por vezes chega a pensar que não está no local adequado porque as pessoas dalí não valorizam de verdade o seu trabalho. Acham os quadros muito caros e como ele não disponibiliza o pagamento via cartão de crédito, muitas pessoas que elogiam o seu ofício acabam não levando nada.

Sobre a história da Boa Vista, não possui conhecimento. Diz ser muito caseiro e nunca pensou em retratar o bairro. No máximo, sente vontade de tirar várias fotografias dos casarões históricos. “Nunca pensei em fazer um retrato da Boa Vista. Gosto de retratar perfis. Vejo a beleza de cada traço quando os desenho. Comecei desenhando personagens de desenho animado e fui me aperfeiçoando com o tempo”, segue ele destrinchando como nasceu sua arte. “Meus pais não compreendiam o que eu fazia. Eram simples e até mesmo ignorantes demais para compreender. Mas digo isso sem querer agredí-los, eles apenas não tinham esse tipo de conhecimento”, complementa.

Ao se recordar das maiores alegrias que a Boa Vista já lhe proporcionou, lembra com carinho de uma moça que parou por alguns minutos diante dos seus quadros e apenas silenciou para contemplá-los. “Ela ficou só olhando, não disse nada. Em seguida, olhou no fundo dos meus olhos e apertou a minha mão. Foi muito gratificante receber esse gesto. Fiquei emocionado”, conta ele.

Mas apesar das vantagens, Cícero pensa em deixar o Recife em busca de novas aventuras num lugar que ele ainda não tem em mente. Quer respirar novos ares, levar seu trabalho para outras pessoas, encontrar o lugar onde finalmente se sinta valorizado.

E se pensa um dia em mudar de profissão, ele responde com intensidade: “Jamais! Nunca trabalhei com outra coisa. Minha arte é e sempre será o meu ofício”.



Seu Antônio e Conceição: “Minha felicidade é essa rua"
 
Casas de arquitetura antiga, já desgastadas pelo tempo, decoram a Rua do Riachuelo. Entre lojas, livraria e outros tipos de comércio, lá estão elas, coladas umas nas outras, lutando por espaço. Uma se destaca entre as demais pelo azul vivo que a colore e as grades verdes que a protege. 

A fachada, na verdade, serve apenas como entrada para uma espécie de vila, onde vários moradores possuem sua própria locação. Através das grades, é possível ver um corredor escuro, uma senhora sentada numa cadeira branca e “uma luz no fim do túnel”. É lá,  na luz, que Seu Antônio e Conceição, casados há sete anos, desfrutam o restinho da tarde de uma terça-feira. 


Conceição e Seu Antônio (Foto: Suzana Mateus)


O casal morador da Boa Vista veio de longe: ele, da Paraíba; ela, do Rio Grande do Norte. Ambos acharam no bairro mais comercial do Recife o lugar ideal para construírem suas vidas. Para escreverem suas histórias. “Vim para cá passar férias na casa de uma amiga e nunca mais voltei. O Recife nunca me deu nada, mas eu amo o Recife”, conta Conceição, 41 anos, moradora do Recife há vinte e nove, sendo três desses na Boa Vista.

Seu Antônio veio parar no bairro “por consequencias da vida”. Chegou ao Recife em 1970, era atleta e iria fazer um teste para o Náutico. Viveu boas experiências no futebol, mas não conseguiu grande notoriedade, então resolveu mudar de rumo, partiu para os estudos. Após cursar dois anos de Direito, largou o curso (nem ele mesmo sabe por que) e seguiu para a área de exatas. Se formou em Engenharia Agronômica e Matemática pela Universidade Federal Rural de Pernambuco e se tornou professor. Foi com essa profissão que conheceu Conceição. Ela era sua aluna, mas se tornou bem mais que isso ao longo dos anos.

O então educador passou a viver na Boa Vista quando arrumou um emprego nas proximidades. Já está lá há quinze anos e se diz satisfeito com a vida, mas sempre faz referência ao Acidente Vascular Cerebral (AVC) que sofreu há quase três anos, logo após a chegada da sua aposentadoria. “A única coisa realmente ruim que vivi aqui foi o AVC”, conta ele. “Assim que se tornou um aposentado ele sofreu esse trauma. Nem deu tempo de aproveitar essa nova fase da vida. Hoje enfrenta muitos problemas de acessibilidade. A Boa Vista não está preparada para lidar com as dificuldades dele”, argumenta Conceição fixando seu olhar no marido. 

Em decorrência do AVC, Seu Antônio possui dificuldades na fala. Nem por isso deixa de lado a simpatia e o gosto pelo diálogo. Expõe sua vida, seus desejos e suas lembranças sem medo ou constrangimento. Pai de dois filhos advindos de outro casamento, conta que é um homem vivido, teve uma juventude agitada com muitas mulheres, ao que ele classifica como “vida de homem”.

Apesar da fragilidade presente em seu olhar, é um homem voltado para a política. Desejoso pelo poder. “O que mais me revolta nesse país é a roubalheira desses políticos. Mas, tenho que confessar, gostaria de viver perto desses ladrões”, conta ele, que já foi candidato a vereador, deputado estadual e federal. “Nunca conquistei um mandato. A única coisa que ganhei mesmo foi esse AVC”, ironiza.

Conceição conversa menos e presta mais atenção nas palavras do marido de quem cuida o dia inteiro. Quando fala da maior alegria que viveu na Boa Vista, resume que é no bairro que ela passou a viver com Seu Antônio. “Viver com ele é a maior alegria que tenho aqui”, diz ela. Mãe de um filho, que mora no Rio de Janeiro, ela se diz satisfeita em morar na Boa Vista. “Aqui é perto de tudo, é muito prático e a violência é como é em todo lugar. Não pretendo mais voltar para o Rio Grande do Norte. Sou feliz aqui”, destaca.

Já Seu Antônio diz sentir saudades da Paraíba, mas sua vida hoje é “toda na Boa Vista”. Ao falar sobre a alegria de viver no bairro, conta que adora a tranquilidade da Rua do Riachuelo. “Sei que não é grande coisa, mas minha felicidade é essa rua. Conheço todos por aqui. O dono da Livraria aqui perto já é meu amigo há 40 anos”, diz ele. Em seguida, pára por alguns minutos e completa: “É muito bom também ficar aqui conversando. Posso considerar a conversa de hoje um motivo de alegria. É bom ser ouvido. É bom desabafar. É bom ter alguém que escute o que guardamos aqui dentro”.

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Irmã Belém quer salvar uma alma de cada vez
Paulo Veras

“Acho que prefiro não sair na foto”, diz a freira antes de fechar a grade da rua e desaparecer lá dentro da casinha humilde, endereço 122 da Rua Joaquim de Brito. O pedido da imagem havia sido feito duas vezes. A fachada da casa, claro, serve para ilustrar a matéria. Mas falta o elemento humano, tão enriquecedor. Falta o sorriso cordial de Irmã Belém.

Fachada da Fraternidade (Foto: Suzana Mateus)

Baiana, a religiosa está há quatro anos e três meses na Fraternidade Missionária O Caminho, fundada há seis pelo padre Gilson Sobreiro, que desenvolve trabalhos sociais diversos em quatro países. A casinha da Boa Vista é uma das quatro instalações da fraternidade em Pernambuco. Lá, se desenvolve um trabalho chamado de “Pastoral de Rua”; um atendimento físico e espiritual a moradores de rua da região central da cidade.

Humilde, a irmã senta no chão para explicar melhor o trabalho do grupo. Quem chegar necessitado à porta recebe alimento e um pouco de atenção. Já é muito pra quem não tem nada na vida, sequer um teto. “Se deixar, de madrugada já tem gente aqui batendo na nossa porta em busca de ajuda”, explica. A dedicação é exercida o dia inteiro. Mas ela sabe que é preciso manter um limite na generosidade. “A gente não pode deixar nossa rotina religiosa, nossas orações”, adverte.

Asseada, a casinha remete bem à vida ascética dos franciscanos. As imagens estão cobertas com um pano púrpura por conta da quaresma. Na parede, o retrato do então papa Bento XVI é a única referência ao esplendor da cúria romana. Todo o resto é muito simples e cordato. Pelo menos é o que se vê da primeira salinha; não foi possível adentrar mais. As irmãs não têm financiamento. Se mantém graças à boa vontade de benfeitores que doam dinheiro ou comida. Tudo o que entra é dividido com os pobres.

No cômodo contíguo, vez por outra se nota o pedaço de um rosto curioso. Trata-se de dona Severina, moradora de rua. Chegou no endereço há duas semanas. No momento, é a única 'acolhida' junto às irmãs. O espaço é pequeno e não é possível ter um grande número de visitantes. "Por questão moral", só se aceita mulheres. A dormida segura e quentinha, ainda que temporária, parece auspiciosa.

Às terças e quintas, Irmã Belém e as demais missionárias percorrem as ruas da Boa Vista para distribuir comida e compreensão. No caminho, vão ficando mais próximas daqueles que parecem tão distantes. Conhecem histórias, dão conselhos, evangelizam o contingente de desabrigados que vão encontrando. “Em São Luís, a quantidade de pobres é muito menor que a daqui. No Paraná, quase não se vê”, comenta, com a experiência de quem já passou por quatro estados oferecendo o menor dos prazeres humanos: o conforto.

Às vezes, porém, a vida parece ser mais cruel que o amor ao próximo. Dos desgostos, um em especial parece entristecer a jovem irmã: “São Francisco passou a vida toda combatendo a lepra. A lepra do nosso tempo é a dependência química”. Fala com a experiência de quem conhece de perto o problema do vício. “Eles têm uma liberdade enorme de ser eles mesmos na nossa frente. Então, se eles cheiram cola, eles vão cheirar na nossa frente”, diz.

A dureza do trabalho, por óbvio, não o invalida. “A gente sabe que a gente não pode mudar o mundo todo. Mas mudar a vida de um já vale a pena. Tocar a alma de um já vale a pena”, diz. Movidas pela fé, as irmãs seguem agindo na caridade. “A gente espera uma recompensa que não é dessa terra”, fala, os olhos brilhando. Tanto quanto o trabalho que desenvolvem aqui mesmo nesse mundo-cão.

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