São Luiz: ontem e hoje

Cinema completou seis décadas de existência em 2012. Foto: Caroline Melo.

O mistério na Avenida Manoel Borba, 709

Moradora de rua da Boa Vista tem sua vida contada pela ótica dos vizinhos. Foto: Diario de Pernambuco.

Padre Cícero da Boa Vista

Conheça a trajetória do pároco da Igreja Matriz. Foto: Júlio Rebelo.

"Tudo lindo"

Rua da Conceição é célebre pelas lojas que vendem móveis antigos. Foto: Amanda Melo.

Redescobrindo a Boa Vista

Marcela de Aquino assina série de reportagens sobre história do bairro.

terça-feira, 23 de abril de 2013

Redescobrindo a Boa Vista

III-   A linguagem nos tempos áureos da Boa Vista                   por Marcela de Aquino

Já amanhecia o dia, quando se escutava a cantiga dos vendedores de fruta " Chora menina pra comer pitomba". Assim iniciava-se o cotidiano da Boa Vista da década de 20. Esse era o tempo dos famosos pastoris do cordão azul e encarnado como uma das poucas diversões a alegrar a população. As mães alertavam os filhos para levarem as parteiras em caso de temporais, e quizá, para frevarem nos carnavais no Largo de Santa Cruz .

Consideradas palavrões naqueles tempos eram as expressões arretado, esculhambado e sabotagem no sentido de sacanagem,não podendo serem ditas em ambiente familiar e decente. Outro nome não pronunciado era abilolado, e existiam muitos moços desse tipo que só podiam ter sido criado com vó. Mas haviam os de outra espécie, que estavam sempre apressados para se recompor quando a sogra aparecia e, por isso, fechavam os mamãe-vem-ai utilizados nas calças em substituição aos habituais botões.  Só que a mocidade gostava mesmo era de flertar nas tardes de domingo, na Rua da Aurora, garotos de um lado da calçada, e meninas do outro.  Depois quando finalmente se tirava uma linha com a garota, tinha que contar com a ajuda dos corta-jacas que elogiavam o moço à família, para que pudesse encostar e, finalmente, se casar para nunca mais se separarem.

Também não se pode esquecer dos indivíduos cabulosos que eram apelidados de chatos de galocha, felizmente para eles, a expressão entrou em desuso. Um tipo popularíssimo das ruas do Recife  da segunda metade do século XX era o Bodião de Escama, mas este preferia estar em torno das mesas do Café Lafayette, no Bairro de São José (Ufa!) chateando a todos com as suas extravagâncias. Mas, tirando esse tipo esquisito, até que as coisas não mudaram tanto. Sempre tem aquele amigo que dá um ziguinau no seu livro e fica com a cara lambida de não saber o que está acontecendo, o tal do bôco-moco parente do abilolado, meninas emperiquitas e de catita fazendo farol (querendo impressionar) pra cima de você.

A sociedade também tinha suas diferenças sociais, haviam aqueles indivíduos que queriam imitar os ingleses  nos seus trajes e faziam fita, botava banca pra inglês ver. Tinham outros que usavam uns brins, que quando não molhado previamente, as calças acabavam-se encurtando até os tornozelos e os paletós deixando à mostra suas traseiras e passavam a ser chamados de roupas surus. Daí, surgiu a piada Vai pescar siri, é?

Nos colégios, há uma disputa sadia entre os alunos em que fulano deu quinau em sicrano no sentido de corrigir por palavras, e não uma rasteira como se pudera imaginar. No futebol, se dava um pitu em outro jogador, ou seja, drible ou finta. E coitado do fígado, sempre era responsável pelo mal-humor das pessoas "Meu fígado hoje não está nada bom" para dizer que se estava chateado. Eram inúmeras expressões como  Fica bobo que jacaré te abraça, Quer matar papai, oião? Que é que há com seu peru? que hoje em dia ficam quase indecifráveis.

E para finalizar em homenagem  aos jornalistas de plantão: quando se dizia em segredo uma informação a um colega pedia-se que se ficasse na moita. Mas é claro que quem ficava (detrás) na moita não era o sujeito da oração, mas a informação. Bom, é melhor encerrar o caso, porque deu bode (sujou, sujou..), não quero que o editor censure minha matéria.  Sem mais ambiguidades, a expressão simplesmente quer dizer em off.

Referência de linguagens: Livro A velha Rua Nova de Rostand Paraíso

Reportagem completa : I- Da lama ao caos
                                   II- Das maxambombas aos bondes elétricos

Ziguezagueando pelas calçadas da Boa Vista: ambulantes no caminho

por Patrícia Bonfim

Ultrapassar buracos aqui, driblar veículos estacionados acolá, ziguezaguear por entre ambulantes e raízes de árvores em busca de uma área plana para percorrer distâncias a pé. Essa é a realidade de quem vai até o bairro da Boa Vista, no Centro da cidade. Quem quer comprar mercadorias no Recife e encontrar variedades e preços diversos, sabe que o bairro é o mais indicado. Conhecido historicamente pelo seu centro de compras, a Boa Vista é repleta de lojas e barracas de comércio informal. Mas quem passa por lá também sabe da dificuldade de transitar pelas ruas e calçadas do bairro. Ocupadas principalmente por ambulantes, o local dos pedestres é tomado por tabuleiros, bancas e carroças que demarcam os espaços dos comerciantes, vendendo desde cadarços de tênis, passando por roupas, sapatos e óculos, até chegar a artigos tecnológicos.


Ambulantes pelos dois lados e muita sujeira nas calçadas da Boa Vista. (Fotos: Moema França)

Desde a sua modernização com a instalação do novo corredor exclusivo para ônibus, em 2008, a Avenida Conde da Boa Vista sofre com a falta de manutenção. A principal via do bairro está degradada e, as calçadas, em péssimas condições. Pedras do pisos soltas, buracos abertos no meio do passeio público e pouco espaço para o pedestre passar são alguns dos exemplos dos transtornos provocados pelo comércio informal do bairro. "As calçadas estão entregues para a população e a prefeitura não fiscaliza. A situação só vai mudar quando mexer no bolso e colocar uma multa alta. Enquanto ficar só na palavra de que vai multar, não vai mudar", afirmou a artesã Zeneide de Melo, que passa pela Boa Vista quase todos os dias.

Os comerciantes que ocupam o passeio público afirmam que tentam deixar espaço para o pedestre passar, mas que nem sempre a ‘boa prática’ é respeitada pelo vizinho do lado. “Tem uns que chegam aqui depois e montam a barraca de qualquer jeito e em qualquer lugar”, contou José Roberto, comerciante da região há 9 anos. Sobre a fiscalização que a Prefeitura do Recife realiza através da Diretoria de Controle Urbano da Prefeitura do Recife (Dircon), os comerciantes não se mostram temerosos. “Todo dia os fiscais passam, a gente sai e depois volta”  diz o ambulante Wellington Nascimento, que vende capinhas para o VEM há menos de um ano na Rua da Soledade. “O jeito é ficar correndo e voltando, nunca tive mercadoria apreendida.”


Fiscais da Dircon apreendem mercadorias dos ambulantes que não conseguiram fugir a tempo; a situação se repete todos os dias

De maneira volumosa e nada silenciosa, o comércio informal vai se instalando em vias onde não existia a prática. É o que ocorre na Rua da Soledade, onde foi inaugurado o novo posto de carregamento do cartão VEM há cerca de 9 meses. Os ambulantes chegaram de maneira rápida e tomaram quase todo o espaço do passeio público.  “No antigo posto, na Praça Maciel Pinheiro, a gente ficava nas ruas porque as calçadas eram estreitas. Aqui o espaço é maior e dá pra vender bem mais que só acessórios para o cartão”, afirmou José Abraão, há 15 anos trabalhando como ambulante.

Os transeuntes têm que driblar as bancas e os buracos para conseguir passar pelo local. Alguns desistem até de esperar pelo montante de pessoas que se formam para atravessar em fila indiana e resolvem andar pela rua mesmo, se arriscando por entre os carros. “Eu fico de mãos atadas, tenho pena dos comerciantes que tiram a renda apenas através desse serviço, mas também não acho justo esse estrangulamento que fazem nas calçadas”, contou Mariana Araújo, estudante de Pedagogia.



Numa tentativa de aliviar a situação, a Prefeitura do Recife deu início ao Plano de Arruamento através da Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano (Semoc) no começo deste ano. A medida prevê demarcar o limite entre a calçada e o comércio com uma linha branca. A expectativa da Prefeitura, embora sem data definida, é abranger toda a cidade e estabelecer uma fiscalização. "Estamos dando prioridade às pessoas na questão da mobilidade", afirmou o secretário João Braga.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Degradação no Centro Histórico da Boa Vista


De quem é a responsabilidade pela preservação do Sítio Histórico: da prefeitura ou dos moradores?
Por Marcela de Aquino     Fotografia: Marcela e Stelivam

Sobrados deteriorados na Rua da Matriz
O centro histórico da Boa Vista permanece com a estrutura dos seus antigos casarios abalada devido a falta de ações públicas que retardem a ação do tempo. De acordo com a prefeitura, o morador é quem deve fazer a restauração dos sobrados, mas grande parte das pessoas que vivem na localidade não tem condições financeiras para custear uma obra. Antigo reduto de uma classe média formada por judeus e italianos e considerada Zona Especial de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural desde 1981,  o velho bairro também sofre com a deterioração de seus logradouros.
Na rua da Matriz, encontra-se lixo acumulado nas calçadas, esgoto a céu aberto, fachadas deterioradas e um sobrado que fora incendiado e corre risco de desmoronar. Segundo Genival Correia da Silva, que trabalha em um imóvel vendendo materiais usados, faz 3 meses que incendiaram o sobrado e até agora a prefeitura não tomou nenhuma providência para solucionar o caso.
"Não se sabe se vão demolir ou tentar restaurar porque é um patrimônio, mas não se resolve nada. E o comércio é prejudicado, já que os carros não passam" comenta, referindo-se a interdição de um trecho da rua por causa do perigo de desabamento. Os comerciantes da área continuam com a retirada dos materiais nos imóveis e mantém as lojas fechadas. Seguindo em frente, se encontra outro imóvel interditado há três anos na Rua da Glória,prestes a ruir, no qual a prefeitura visitou semana passada para fazer um levantamento, mas a lentidão nesses casos predomina. 

Demax, em seu salão de beleza cuidando da clientela
Na rua Velha, além de lojas comerciais, há bastante depósitos de móveis, de carrocinhas, pensões e casas de moradia. No sobrado de número 385, reside o cabeleireiro Adelmar José da Cunha, de 56 anos, conhecido por Demax, que transformou sua moradia em um salão de beleza. Faz cinco anos que mora como inquilino na Rua Velha, e trinta, na Boa Vista. Ele mesmo é quem fica responsável pelas reparações necessárias na casa, como uma pintura ou concerto no telhado. " O único problema é com as telhas canal que, às vezes, abrem quando passa um transporte pesado como caminhão e ônibus". Mas, afirma sentir-se seguro com a estrutura da casa, " Não tenho medo nenhum de morar aqui. Se houvesse perigo, já tinha ido embora". 

Fachada de um sobrado 
Grande parte das casas pertencentes ao Sítio Histórico foram sendo ocupadas pela população mais pobre, que muitas vezes, alugam os imóveis e delegam aos inquilinos a responsabilidade de fazer pequenas reformas na casa. Algumas, abandonadas, e pela omissão do Estado na localidade, acabam sendo lugares propícios ao tráfico de drogas e a prostituição, segundo relatos de moradores. 

Pátio de Santa Cruz
A intervenção da prefeitura é sentida quando da punição sobre uma mudança no imóvel como conta Maria de Lurdes da Silva, dona de um pensionato na Rua da Santa Cruz e de uma loja no Mercado da Boa Vista. Através de uma denúncia, os agentes públicos fiscalizaram o local onde estava sendo colocado um ar condicionado, que não prejudicou a estrutura e por isso, o imóvel não foi multado. Ainda segundo ela, as fachadas de casas permanecem com azulejos danificados porque não se pode alterar nada, conforme a legislação. "Ninguém pode mudar os azulejos antigos ou, se mudar, tem que ser do mesmo modelo. Mas é difícil encontrar hoje, só se faz por encomenda".

Gilson Gonçalves, professor de arquitetura da UFPE, diz que de acordo com a legislação, mesmo o casario sendo tombado, o responsável pela revitalização do imóvel é o proprietário. "A prefeitura não pode investir dinheiro público em bens privados" complementa.   Segundo ele, a legislação é importante para a preservação de um bem cultural, apesar da necessidade de haver alguns ajustes. "O Sítio Histórico tem uma legislação específica e rigorosa pela prefeitura, no qual você não pode alterar as formas, as cores, os revestimentos, os telhados, para não descaracterizar, ou seja, o aspecto formal é muito importante para a preservação histórica." Ele reconhece a condição financeira dos moradores e cita como uma possível alternativa um programa de financiamento pela Caixa já concedida aos moradores da parte histórica de Olinda, e relembra a importância da iniciativa do governo do Rio de Janeiro no projeto Corredor Cultural, em que a prefeitura financiou a revitalização de uma zona especial.


Jacques Ribemboim, presidente da ONG Civitate
foto retirada do blog de Jamildo
Uma organização não governamental  localizada na Rua Velha tem como objetivo recuperar os espaços urbanos. O presidente da ONG Civitate, Jacques Ribemboim, afirma que para o melhoramento do entorno se faz necessário uma ação conjunta entre os moradores e o poder público. "A prefeitura precisa cuidar do local e sinalizar que vai investir em serviços e equipamentos públicos. A partir daí, os moradores e proprietários respondem investindo em seus imóveis". Para ele, a iniciativa tem que partir da prefeitura através de um programa para a recuperação territorial. "Quando prevalecer o descaso das autoridades, os donos dos imóveis relaxam em seus cuidados, pois não valerá a pena. O abandono torna-se então tanto público quanto privado e a desordem passa a tomar conta das ruas e edificações, com invasões e mau uso dos espaços", assegura. Defende também a qualidade ambiental que só vinha sendo planejada nos últimos governos para valorizar os imóveis e, com isso, afastar os mais pobres da região, e cita a complementaridade de uma política habitacional para atender as pessoas mais carentes da área.


quarta-feira, 17 de abril de 2013

Reduto de minorias vulneráveis na Manoel Borba


ONG GTP+ acolhe profissionais do sexo e pessoas vivendo com HIV 

Por Igor Nóbrega
Foto: Reprodução/Internet



Acolher pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica. É com esse objetivo que o Grupo de Trabalhos em Prevenção (GTP+) atua desde 2000 dando apoio a pessoas vivendo com HIV e a profissionais do sexo (homens, travestis e transexuais).  A organização não governamental nasceu a partir da necessidade de criar uma entidade coordenada por soropositivos, que gerasse na população que passa pelo problema um sentimento de identificação com a instituição. São vários os projetos da ONG, que desenvolve trabalhos de prevenção e luta pelos direitos humanos e cidadania das pessoas soropositivas.

 “O perfil da epidemia mudou, e essa constatação nós vemos nas comunidades. Hoje o HIV circula em sua grande maioria nas comunidades mais vulneráveis, porque os parceiros têm dificuldade de negociar a relação sexual”, conta Wladimir Reis, coordenador da GTP+. Com sede na avenida Maciel Pinheiro, 487, no bairro da Boa Vista, região central do Recife, a instituição se deparou com uma nova demanda nos últimos tempos: os usuários de crack. Longe da rota do turismo sexual da Zona Sul, onde os garotos e garotos de programa precisam ter perfil diferenciado e boa aparência para satisfazer a clientela que frequenta os hoteis, muitos tendem a realizar trabalhos sexuais por 10 ou 20 reais para comprar a droga.

“A gente optou por manter a sede na Boa Vista por o centro da cidade ser um lugar mais acessível em questão de mobilidade e transporte, visto a questão da vulnerabilidade da população com qual a gente trabalha. Além de possibilitar o acesso mais fácil dessa população, aqui também podemos atender à demanda dos moradores de rua e profissionais do sexo que vivem ao redor”, considera Wladimir. 


Wladimir Reis, Coordenador Geral do GTP+/ Foto: Igor Nóbrega

Atualmente, a GTP atende de duas a três pessoas por semana, a maioria homens e usuários de crack. A maioria deles já foi mandada embora de casa pela família e costumam transar por baixos valores para comprar a pedra de crack. A partir da recepção, a ONG tenta encaminhá-los para o Centro de Atendimento Psicosocial (CAPS) mais próximo. Lá, porém, eles nem sempre são acolhidos da melhor forma.  “Qual o papel da ONG que o governo não faz? Se você manda uma travesti para o CAPS, ela não é acolhida por ser travesti. Se você mandar um garoto de programa, uma pessoa vivendo com HIV... ela é discriminada. As pessoas já a vêem como alguém que ta passando vírus pra você. Muitos morrem de depressão, pela rejeição de não serem aceitos em lugar nenhum. O que a gente faz é acolher essas pessoas”. 

RESISTÊNCIA - Apesar da grande quantidade de projetos que mantém e da importância do serviço que presta à sociedade, a GTP+ pede socorro. A ONG, que chegou a ocupar dois prédios (o antigo ficava na mesma rua, no prédio onde funciona o Sindicato dos Bancários de Pernambuco) e contava com apoio de várias agências internacionais, hoje sobrevive através da cozinha solidária que mantém, de doações e de alguns editais do governo.

“Éramos financiados por muitas agências internacionais de cooperação antes de 2010. Depois disso, a cooperação internacional foi embora e a nacional ainda não é sensível a apoiar ONGs que defendem os direitos humanos”, lamenta Wladimir. A organização, que chegou a ter 26 colaboradores, conta hoje com 16 . Entre eles, um psicólogo, um assistente social e um pedagogo.

Sempre em busca de manter seus projetos e lutar pelos direitos humanos, a GTP+ realiza, no próximo dia 17 de maio, um seminário com o tema “Luzes para se refletir: Solidariedade, Diretos Humanos e Cidadania”. Logo depois, há uma vigília de soropositivos pelas ruas do bairro da Boa Vista.

PROGRAMAS E PROJETOS - O GTP+ trabalha com duas linhas: o programa de prevenção ao HIV e o programa de cidadania. Dentre os projetos, está a “Cozinha Solidária”, que atua na segurança alimentar das pessoas vivendo com HIV que participam dos demais projetos realizados pela instituição. A maioria dos cozinheiros e auxiliares vive com o vírus e já tinha experiência com cozinha antes de serem acolhidos, mas foram expulsos de seus empregos. 



Mariana, 30 anos, está na cozinha há cinco meses. Ela contou que antes de participar do projeto, chegou a se prostituir e sofreu muita violência, vários assaltos e até tentativas de morte. A travesti trabalhou em casas de família durante dois anos, mas nunca se sentiu confortável nesses ambientes. “Para mim isso aqui foi uma ótima oportunidade. Eu estou me sentindo bem aqui”, conta Mariana, que soube do projeto através de uma colega.

A cozinha funciona das 10h às 14h e é aberta à população. "A Cozinha Solidária é um lugar onde as pessoas marginalizadas podem se sentir seguras ao vir", diz Wladimir. O Restaurante funciona no esquema self-service sem balança, com preço a R$ 7,99. 

Além desse projeto, há outros como o “Horas Femininas”, onde mulheres portadoras de HIV trocam experiências com outras na mesma situação. “A troca de experiências entre as mulheres e a abordagem certa de mulheres com o problema falando para outras na mesa situação garantem o sucesso do projeto”, considera Wladimir. Também há o grupo de teatro de rua “Turma da Prevenção”, que através de esquetes teatrais, apresenta em comunidades de vulnerabilidade social e econômica temas como a cidadania, direitos humanos e a prevenção contra DSTs. (Veja todos os projetos da GTP+ aqui)

terça-feira, 16 de abril de 2013

Lugares são feitos de pessoas

por Paulo Veras

Faces da Boa Vista / Arte: Suzana Mateus

Basta parar por 20 minutos em frente às grades de uma faculdade situada de frente para a Conde da Boa Vista, a artéria nervosa do bairro, para ver um desfile de pêras, uvas e maçãs se misturarem na salada mista de cores e sotaques que forma a sociedade recifense. Pessoas passam. Milhares, todos os dias.

O telefone celular parece um elo universal. Um. Dois. Dez transeuntes o carregam junto ao rosto. Através dele, mais pessoas se unem à roda viva do bairro, mesmo que virtualmente.

Mas não é o caso de falar em impessoalidade. Um grupo de amigos dá uma risada coletiva. A neta segreda uma confidência à avó. Um menino parece aborrecido com o passo apressado da mãe. Todos têm espaço.

A tatuada do cabelo rosa, o ambulante africano, o gay fashion, o casal de namorados. Tão singulares. E tão plurais.

“Moço, a C&A fica pra esse lado?”, pergunta a mulher do interior; sotaque arrastado. É ela que tira o observador de seu transe, lembrando que contato vai muito além de apontar uma direção. Lugares são feitos de pessoas; e é delas que vamos falar agora.

- "Eu adoro a Boa Vista!" (por Ursula Neumann)
- Moradores em gênero, número e grau (por Paulo Veras)
- Entre efêmeros e permanentes, três perfis da Boa Vista (por Suzana Mateus)
- A Boa Vista com sotaque africano (por Thiago Moreira)
- O mistério na Avenida Manoel Borba, 709 (por Suzana Mateus)
- O mistério na Estrada dos Remédios, 2231 (por Suzana Mateus)
- Irmã Belém quer salvar uma alma de cada vez (por Paulo Veras)
- Viver na Boa Vista é caro (por Paulo Veras)
- Especulação imobiliária começou na Imperatriz (por Paulo Veras)
- Mercado imobiliário não consegue suprir demanda por moradia no Recife (por Paulo Veras)

Viver na Boa Vista é caro

por Paulo Veras


Projeto do Residencial Boa Vista / Arte: Conic

Imóvel novo e com preço baixo na Boa Vista não é coisa que se encontra todo dia. A Moradasol Imobiliária, porém, está vendendo unidades no Residencial Boa Vista, prédio de 24 andares que está sendo construído na Avenida Conde da Boa Vista, número 1511, pela Construtora Conic, por R$ 180 mil. O prédio vai ter piscina, sauna, salão de festas, playground, mini campo gramado, brinquedoteca, sala de jogos e espaço gourmet. Talvez isso explique porque se cobra esse preço por um apartamento de 40 m² que tem apenas um quarto.

O Edifício Jardins da Aurora também vai ter mordomias como piscina, recepção e quatro vagas na garagem. A obra, que está sendo tocada pela Moura Dubeux no número 1531 da tradicional Rua da Aurora, tem duas torres (batizadas de Capibaribe e Beberibe) e 42 andares de apartamentos em cada uma delas. Os interessados podem procurar a Imobiliária Marcos Trigueiro, que oferece um imóvel na torre Capibaribe com quatro suítes e 208 m² de área construída. O comprador precisará desembolsar a bagatela de R$ 956 mil.

Em 2012, segundo dados da Federação das Indústrias do Estado de Pernambuco (Fiepe), 259 imóveis foram vendidos no bairro da Boa Vista. O número compreende apenas 3,6% dos negócios realizados no Recife. Em parte isso se deve ao preço dos imóveis vendidos no bairro. Números do índice FIPE ZAP, elaborado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE), mostram que em março de 2013 o preço médio do metro quadrado na Boa Vista ficou em R$ 3.012 para apartamentos e R$ 3.395 para casas.

Clique aqui para acessar o infográfico

O bairro, entretanto, continua destino por causa de seus atrativos. Na Boa Vista, é fácil achar transporte, comércio, serviços de saúde e educação. “Existe uma certa atratividade do Centro para certa classe de trabalhadores, principalmente para quem trabalha na Ilha do Leite ou na área jurídica. Mas também há uma atração para quem gosta do Centro da cidade pelo seu aspecto simbólico, pelas suas características históricas”, diz o professor Leonardo Cisneiros, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). Leonardo é um dos editores do blog Direitos Urbanos, que discute uma nova visão de ocupação urbana no Recife.

“O problema é quando a especulação imobiliária responde a esse interesse de morar no Centro destruindo justamente o que ele tinha de original e atraente. É o caso desses novos prédios da Boa Vista. É querer estimular a ocupação dele fazendo com que ele se torne atraente para quem só aceita morar num tipo de bairro como Boa Viagem”, explica o professor. Para ele, há um processo de inflação de preços na cidade. “Ainda não está claro o quanto dessa inflação vem de uma mudança demográfica mais ou menos estrutural, e o quanto vem da especulação. Tenho uma sensação de que já há muito disso, da tentativa de comprar por um preço para revender mais caro e um processo de bolha. E isso interfere na ocupação do espaço urbano da cidade pela forma quase extrativista de explorar ao máximo os terrenos disponíveis”, diz.

Já a professora Suely Leal, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), não acredita na existência de um forte movimento de especulação imobiliária no bairro da Boa Vista. “As pesquisas não mostram a Boa Vista como uma região de especulação imobiliária. Se houver, é algo muito insignificante”, comenta. Para a professora, o foco do mercado imobiliário está em outros bairros. Além da forma tradicional de especulação sobre o valor do solo e do imóvel, Suely verifica também a existência de outras duas tendências no Recife: os condomínios-clube e as cidades planejadas.

Clique aqui para acessar o infográfico

Na UFPE, a professora Suely, que coordena o Núcleo de Estudos em Gestão Urbana e Políticas Públicas (NUGEPP), liderou um estudo que analisou o mercado imobiliário pernambucano desde 1980 até o ano em questão, 2007. O levantamento mostra que a maior parte das empresas do setor imobiliário do Estado surgiu nas décadas de 60 e 70, impulsionadas pelas políticas habitacionais do governo militar. O padrão construtivo dessa indústria que é identificado na época mostra a predominância da construção de vilas residenciais e prédios de tipo caixão.

Com o tempo, porém, esse padrão vai dar espaço a um processo de verticalização, principalmente a partir da segunda metade dos anos 90. O modelo atinge principalmente as zonas norte e sul da cidade. O processamento dos dados indicou os bairros de Boa Viagem, Pina, Espinheiro e Campo Grande como os que possuem os maiores níveis de verticalização. “A verticalização permitida pela nossa legislação faz com que os terrenos possam ser convertidos em prédios com uma área construída cinco vezes maior que a área do terreno original”, diz o professor Leonardo. “É uma espécie de mais-valia em cima do terreno. Um multiplicador do seu valor inicial”, conclui.

No caso da Boa Vista, os dados do NUGEPP mostram que a partir do final dos anos 90 e início da década seguinte, a atuação por parte do mercado imobiliário diminuiu consideravelmente. O desinteresse é interpretado como devido à saturação do bairro e a necessidade do mercado de se consolidar em outras áreas, onde fosse possível maximizar os investimentos. Estudos do processo de uso e ocupação do solo da Prefeitura do Recife, também em 2008, mostram que até 1996 a Boa Vista era o segundo bairro com a maior concentração de área construída. Em 2003, porém, a concentração de área construída se desloca para bairros como Boa Viagem, Ibiribeira, Santo Amaro, Ilha do Leite e Joana Bezerra.

Leia mais sobre especulação imobiliária nos textos "Especulação imobiliária começou na Imperatriz" e "Mercado imobiliário não consegue suprir a demanda por moradia no Recife".

Especulação imobiliária começou na Imperatriz

por Paulo Veras


Rua do Aterro - futura Rua da Imperatriz - em 1871 / Foto: Reprodução

A história da especulação imobiliária no bairro da Boa Vista começa na metade do século XVIII, quando uma intervenção do poder público define a criação da Rua do Aterro (hoje, Rua da Imperatriz Teresa Cristina). Ao menos é o que diz a dissertação de mestrado “Para Morar no Centro Histórico: condições de habitabilidade no Sítio Histórico da Boa Vista no Recife”, escrita em 2011 pela urbanista Iana Ludermir Belardino para o Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A ocupação da Boa Vista havia começado no século anterior como resultado da demanda de moradia próxima ao emergente Porto do Recife. Até 1745, porém, a região da Rua do Aterro permanecia desabitada. O núcleo de ocupação do bairro tinha surgido mais ao sul, nas Ruas Velha e da Glória; no entorno da Igreja da Irmandade dos Homens Pardos de São Gonçalo. Ali, as edificações eram simples e térreas.

Tudo muda com o surgimento da Rua do Aterro. Nos anos seguintes, a ponte que ligava a região do porto ao primeiro povoamento da Boa Vista cai e não é reconstruída pelo poder público. “Tais intervenções propiciaram a valorização do solo e, consequentemente, uma maior verticalização das edificações da Rua do Aterro”, diz Iana no texto.

Em 1759, a Rua do Aterro já estava parcialmente habitada em seu lado par. É nessa época que surge o padrão de ocupação da Boa Vista: comércio no térreo e habitação dos senhores nos andares superiores. “As edificações da Rua do Aterro, sobrado de vários pavimentos, mais largos e ornados, contrapunham-se às casas térreas em lotes estreitos da Rua da Glória e da Rua Velha”, escreve a pesquisadora.

Pudera. Enquanto a aristocracia da nova capital da Província de Pernambuco toma conta da Rua do Aterro e da recém construída Praça Maciel Pinheiro, o antigo núcleo de ocupação começa a ser desprezado. Em 1824, quando o norte da Rua do Aterro já tinha recebido investimentos capazes de levantar o Ginásio Pernambucano e a Assembleia Provincial, a prefeitura comprava parte do Sítio dos Coelhos, na zona ao sul da Rua Velha, para a construção de um matadouro, currais de gado e curtumes.

O valor imobiliário da região despenca, levando a Rua Velha a ser ocupada por um “estrato de renda inferior”, como define Iana. “São notáveis, desde os séculos XVIII e XIX, os primeiros sinais de desvalorização do primeiro núcleo de ocupação da Boa Vista”, explica a urbanista.

Como se sabe hoje, o movimento não ficaria restrito àquela região. No começo do século XX, seria a vez dos moradores da Rua da Imperatriz rumarem para a desejada Rua da Aurora ou para as novas regiões da cidade que começavam a ganhar força. Eram levados pelo sanitarismo de Saturnino de Brito. Os sobrados que ficavam eram, finalmente, habitados por uma população mais modesta ou perdiam sua função habitacional, ficando apenas como base do fervilhante centro comercial em que se convertia todo o bairro. A rua se esvaziava pelo mesmo artifício que a tornara gloriosa.

Leia mais sobre especulação imobiliária nos textos "Viver na Boa Vista é caro" e "Mercado imobiliário não consegue suprir a demanda por moradia no Recife".