terça-feira, 19 de março de 2013

O mistério na Avenida Manoel Borba, 709

Fátima, moradora de rua da Boa Vista, tem sua história contada pela ótica dos vizinhos

por Suzana Mateus


Fátima na fachada da casa 709/Foto: Suzana Mateus

A dona da barraca florida arruma as coisas pra ir embora. Um homem de boné amarelo varre a rua. Dois colegas de trabalho batem um papo enquanto fumam na hora do intervalo. O vigia de uma editora lê o jornal. Um casal de amigos conversa, um deles com um bebê nos braços. Todos esses personagens compõem a imagem de um fim de tarde na Avenida Manoel Borba, no Bairro da Boa Vista. Todos foram entrevistados na busca por reconstituir uma história da qual eles não fizeram parte.

É a história de D. Fátima. Magra, estatura baixa, rosto miúdo. Roupas estampadas, lenço vermelho na cabeça, batom também vermelho nos lábios. Lá está ela, sentada na frente de uma casa amarela não habitada, desgastada pelo tempo e pela sujeira. Trata-se de uma moradora de rua. Atípica e misteriosa, não quis falar sobre si, mesmo após duas tentativas de aproximação. Alegou que estava “ocupada”, que voltássemos num outro dia. Dia esse no qual ela também não pode nos receber em sua... residência.
 
Fátima (escondida no canto esquerdo) se recusa a ser fotografada/Foto: Suzana Mateus








A mulher costuma ficar sentada ali e se manter imóvel. Parece mais um quadro. Um retrato emoldurado pela abertura improvisada em uma das entradas da casa. Só há espaço para sentar e colocar alguns poucos objetos. É essa abertura que ela considera como sendo seu lar. Foi lá que Fátima construiu várias relações. De acolhimento a espanto, a moradora de rua não passa despercebida pelos olhares. A maioria a conhece e sabe um pouco de sua história. Mitos e verdades se confundem a respeito daquela que é mais que uma simples sem-teto. É um elemento do próprio espaço. Pertence ao cotidiano da Boa Vista.

Mas, há quanto tempo a moradora teria adotado a fachada de nº 709 como seu lar? Os depoimentos divergem. Entre trabalhadores e moradores, há quem diga que faz dez anos, alguns citam três, outros não lembram, mas a maioria entra em consenso quando se trata de falar do dia em que a mulher passou mal e teve de ser hospitalizada. “No ano passado, deram comida envenenada a ela. Ela quase morre. Foi levada pelo Samu e deixou todas as coisinhas na frente da casa. O carro do lixo levou tudo”, conta Rosa Maria de Lima, a dona da barraca florida que já trabalha naquele local há dezoito anos.

Rosa Maria de Lima /Foto Suzana Mateus

Foi na época em que Fátima adoeceu que os três batentes que servem de entrada para as portas da casa foram fechados com cimento e tijolos pelo dono da residência. No entanto, quando a moradora de rua voltou do hospital, vizinhos e amigos da avenida se juntaram para quebrar a barreira e possibilitar que D. Fátima continuasse sua vida naquele lugar que já é seu. Com uma boneca nos braços, de quem cuida o dia inteiro, a mulher de lábios vermelhos costumava gritar por alguns nomes, como se várias pessoas estivessem dentro da casa. Hoje não grita mais. O silêncio é a sua grande companhia.

D. Rosa conhece D. Fátima há um bom tempo, não sabe exatamente quanto, mas já chegou, inclusive, a conversar com a moradora de rua. Costuma ajudá-la dando umas roupas e diz que “as pessoas comentam” que a mulher silenciosa tinha uma condição financeira muito boa. Que tem, inclusive, uma filha médica e que após a morte do marido jogou tudo pro alto e se entregou às ruas. Segundo D. Rosa, D. Fátima se encontra em estado de depressão profunda. Já foi levada para um abrigo, mas fugiu de lá porque não se considera “velha o bastante para viver num lugar como aquele”. Algumas pessoas, apontadas pela dona da barraca como a possível família de Fátima, visitam a moradora e lhe concedem ajuda. Ainda assim a mulher prefere a casa de amarelo encardido e sem vida e a sua vizinhança acolhedora.

Mas não é somente do carinho dos vizinhos que D. Fátima sobrevive. Ela também está disposta a amar. Foi assim que se apaixonou por Alcymar Monteiro quando este tinha um programa na Rádio Recife. Fátima o seguia com uma fotografia do próprio. Passava horas esperando que o artista saísse da rádio. Resultado disso: Alcymar precisou colocar vidro fumê no carro para não ser reconhecido. “Ela andava pra cima e pra baixo com uma foto dele. Dizia estar apaixonada”, destaca Rosa, enfatizando também que a moradora é muito tranquila.

Célio José concorda com Rosa, mas conhece o momento no qual D. Fátima fica agitada e perde as estribeiras. Trabalhando como auxiliar de limpeza do edifício Carlos Gomes, que fica em frente à casa 709, o varredor destaca que a moradora é de fato muito calma. No entanto, às vezes costuma quebrar as garrafas deixadas pelos frequentadores da Metrópole – boate que fica na esquina ao lado da residência – no meio da rua, com muita agressividade. Segundo ele, nem mesmo as torcidas organizadas desrespeitam a moradora de rua. “As organizadas passam aqui assaltando as pessoas, mas com ela não fazem nada”, diz. Célio, bem como Rosa, também lembra bem do dia em que D. Fátima passou mal. Segundo ele, as pessoas que passavam na rua notaram que ela tinha urinado nas próprias roupas e que não estava bem. Foi assim que esses transeuntes comunicaram a situação aos vizinhos, que ligaram para o Samu para que a doente fosse hospitalizada.

Célio José/Foto: Suzana Mateus

A mesma cena marcou muito Joselito Fernandes. Vigia da Editora Desafio, Seu Joselito se recorda que D. Fátima ficou “mole, doente e vomitando” e que a causa dessa condição foi uma “sabotagem que fizeram com ela”. Isso o indigna, sobretudo, por ser a moradora “alguém reservada, que não faz mal aos outros e que já enfrenta dificuldades demais para passar por uma situação como aquela”. Mas esse não foi o fato relacionado à sem-teto que mais marcou o vigia. Como contou, um dia um carro preto parou na Avenida e dele desceu um homem já velho que disse ser D. Fátima uma ex- grande secretária do Grupo Votorantim.

Joselito Fernandes/Foto: Suzana Mateus

Joselito lembra desse dia e diz ter ficado abismado com aquela revelação. Quase não acreditou no que foi dito. Ele - que leva almoço para D. Fátima todos os dias cumprindo ordens da patroa – não conseguia imaginar que aquela senhora, que vive em condições tão precárias, havia um dia tido uma vida completamente diferente. “Não sei como ela veio parar aqui, mas deve ser uma história muito triste”, destaca. A versão apresentada por ele constitui a segunda a respeito do passado de D. Fátima. Diferente de D. Rosa, Joselito não cita a possível filha médica e perda do marido.

Tendo contato todos os dias com a moradora, o vigia destacou várias características da ex-secretária. Disse que ela lê muito bem. Às vezes está “evangélica com uma bíblia debaixo do braço”; às vezes está “dançando no meio da rua e fazendo despacho”, tudo isso com a boneca que possui, por quem nutre grande afeto. Ele enfatiza ainda que D. Fátima lhe causa admiração pela sua vaidade. Todos os dias a moradora de rua escova os dentes, usa o espelho para pentear os cabelos, se maquia, e curte o silêncio das horas sentadinha em seu lar. Para conquistar D. Fátima, basta levar comida, cigarros ou bebida. Já que bebe e fuma bastante, qualquer um desses agrados já a faz agradecer e dizer: "Deus te abençoe’'.  

Se D. Fátima intriga e é acolhida pelas pessoas que trabalham na rua, o mesmo ela consegue fazer com quem mora naquele local. Edilson Gomes é morador do prédio Carlos Gomes há cerca de 15 anos e não lembra muito bem como foi que percebeu que havia uma nova moradora na Avenida. Ele se recorda, no entanto, que Fátima não vivia sozinha no início. Antes, ficava onde agora é um laboratório, junto com uma amiga. Mas essa amiga, diferente de D. Fátima, era muito mal educada. Elas brigavam o tempo todo, até que a colega foi embora. D. Fátima, que é alguém muito reservada, desperta a curiosidade de Edilson que chega a dizer que ela é “muito mais educada do que certos médicos e universitários do prédio” onde ele mora. O homem nos conta isso enquanto carrega nos braços seu primeiro filho, Emanuel, e ao mesmo tempo conversa com Edinete Mendonça, dona de uma lojinha no térreo do edifício.

Edilson Gomes, com seu filho Emanoel, e Edinete Mendonça/Foto: Suzana Mateus

É através de D. Edinete que tivemos acesso à terceira versão da vida de Fátima. Segundo a dona da loja, a sem-teto teria sido noiva por dez anos de um rapaz que lhe trocara por outra moça. Não resistindo à traição, Fátima teria largado tudo e ido ao encontro do abandono nas ruas. D. Edinete conta a história e em seguida pergunta, com ar de desconfiança: “Vocês estão fazendo isso para tirar ela da rua, né? Não faça isso não, ela já está velha, já sofre muito, às vezes é roubada pelos próprios camaradas da rua. Deixe ela ali no canto dela”, diz a senhora, antes de receber uma nova explicação do propósito de estarmos ali. Satisfeita com a resposta, a mulher volta a falar de D. Fátima, se recordando de uma cadeira de sol que deu a ela. Havia comprado a cadeira para si, mas ao ver a moradora de rua sentada no chão resolveu doá-la. No dia seguinte a cadeira já tinha sumido; alguém já havia roubado. Fato que faz a dona da loja rir alto e se dizer “arrependida” pela ação.

Edilson balançava com cuidado o próprio filho quando disse que D. Fátima tinha o costume de juntar todas as suas coisas numa mala e fazer uma espécie de “turismo”. Ela dizia que ia viajar e saía pelas ruas arrastando uma bagagem. Ele diz ainda que outros moradores de rua já tentaram interagir com Fátima, mas que ela é muito reservada e não dá confiança a ninguém. “Às vezes chegam uns moradores de rua aí tentando se misturar com ela. Alguns até mesmo paquerando-a. Eles ficam passando de um lado para outro, você percebe mesmo que é paquera, mas D. Fátima continua parada, sem dar atenção”, destaca.

Maria Oliveira (Foto: Suzana Mateus)

Com uma vida feito essa, seria D. Fátima feliz? Eis aí uma grande questão sem resposta. Maria Oliveira, que trabalha na Avenida como cabeleireira, diz que é possível que a mulher silenciosa de lábios vermelhos seja feliz do jeito que vive. Tudo o que Maria sabe sobre o possível passado da moradora é que ela vivia bem e teria passado por uma grande dificuldade na vida que a fez largar tudo. “O ser humano é como uma casa. Algumas resistem; outras não aguentam diante de certas situações. Mas felicidade... Felicidade não é ter um sorriso estampado no rosto. Felicidade é um estado de espírito”, argumenta a cabeleireira, que em seguida completa: “Talvez D. Fátima seja feliz dessa forma. Talvez seja a maneira que ela encontrou de achar a liberdade da qual precisava para viver bem consigo mesma”.


Fátima/Foto: Suzana Mateus
Leia mais sobre moradores de rua nos textos "O mistério na Estrada dos Remédios, 2231" e "Irmã Belém quer salvar uma alma de cada vez".

0 comentários:

Postar um comentário